segunda-feira, 2 de março de 2015

DESABAFO DE UM NÃO TÃO JOVEM ADVOGADO

Com mais de uma década de militância na advocacia, por vezes ainda me pego sem palavras para explicar ao cliente porque o processo dele ainda não foi julgado. Pior ainda, explicar porque ele ganhou o processo e ainda não recebeu o que lhe é devido.

Nós, os advogados, sobretudo da iniciativa privada, temos prazos, muitos deles fatais, cuja inobservância pode acarretar prejuízos irreversíveis ao cliente. Vivemos diariamente pressionados pelos prazos, eles nos acompanham no trajeto para as nossas casas, deitam-se em nossas camas e, não raro, invadem nossos sonhos e pesadelos. Vivemos em função deles. Não temos horários, nem rotina. Foram inúmeras as vezes que sacrifiquei noites de sono para analisar processos, estudar estratégias e encontrar o melhor argumento para defender os interesses dos meus clientes. Advogar, na prática, é o ato de se tornar escravo da profissão. Ainda que por gosto e paixão, o ato é de escravidão.

Advogados do setor público também têm prazos, mas gozam de privilégios que fazem muita diferença; prazos em dobro, em quádruplo; prerrogativa de intimação pessoal. Mas ainda assim tenho a certeza de que os nobres colegas do setor público, quando empenhados no ideal de justiça, também acabam por servir à profissão e muitas vezes se privam de atos sociais e de lazer em prol do melhor desempenho profissional.

Os magistrados também devem cumprir prazos; melhor dizendo, a lei sinaliza prazos para que os juízes, desembargadores e ministros pratiquem seus atos. Mas, e quando magistrado não cumpre o prazo previsto em lei para a prática de determinado ato? Respondo com a experiência de quem se dedica à carreira jurídica há mais de treze anos: na esmagadora maioria das vezes, nada. O juiz não perde a oportunidade de decidir ou despachar, embora o prazo para tanto tenha se expirado; tampouco tem descontos em seus subsídios. Mas o magistrado nunca é o culpado. 

A demanda de processos é enorme. Não há magistrados e serventuários suficientes para processar e julgar tantos feitos com a celeridade que se espera. A culpa não é deles. É do famigerado jurisdicionado, que tem o péssimo costume de se socorrer do Poder Judiciário sempre (ou quase sempre) que tem seus direitos lesionados. A falta de estrutura costuma ser a grande culpada, mas se esquecem de que é o homem quem cria a estrutura e, se ela falta, é por culpa dos reles mortais.

Não tenho dúvidas em dizer que o cenário judiciário é caótico. O Poder Judiciário se tornou mecanizado, demasiadamente parcimonioso e descompromissado com seu objetivo, que é a resolução dos conflitos de interesses e a entrega do bem jurídico tutelado a quem de direito. O cidadão se tornou estatística. Corre-se para praticar atos processuais, para produzir números, decisões, sentenças e, lamentavelmente, estes não traduzem a realidade e tampouco proporcionam justiça.

Criou-se uma tendência verdadeiramente pífia de produzir sentenças com valores módicos. Pobres daqueles magistrados que pensam que as decisões moderadas desestimularão a crescente demanda processual. Indenizações moderadas, ao revés, estimulam as práticas odiosas que abarrotam os tribunais. O empresário, o detentor do dinheiro e dos meios de produção, a par desse cenário, permanece lesionando os direitos dos menos favorecidos. A razão é bem simples: é muito mais barato pagar (quando quiser e puder) indenizações judiciais do que adequar o modus operandi ao que a lei prescreve. Para as empresas, cumprir a lei custa caro.

Com todo esse cenário, o advogado sobrevive, é um profissional de resistência, mediando uma relação que há muito se encontra em declínio e deterioração: o jurisdicionado e o Poder Judiciário. Meus ouvintes se assustam quando digo que o advogado é um devaneador que tenta ajudar um ignorante a pedir alguma coisa para um prepotente. As palavras podem parecer fortes, mas, enfim, em alguns casos são duramente reais.

Comecemos por nós; sempre ouvindo os clientes e visionando o rápido sucesso da causa. Não passamos de Dom Quixotes, recebendo depósitos diários de confiança e cobranças. 

Os clientes, jurisdicionados, são ignorantes porque, por si só, não possuem condições de pedir algo ao juiz sem um intermediário. A ciência jurídica evoluiu (ou não) de tal forma que até mesmo os juristas, quanto mais se dedicam aos estudos, mais têm dúvidas; que dirá aqueles que não se especializaram nesse ramo científico de loucos apaixonados.

O magistrado, por seu turno, é um vencedor, que superou limites, venceu a si mesmo para ser aprovado em rigorosíssimo concurso de provas e títulos, mas que, em alguns casos, se esqueceu de que para resolver conflitos interpessoais é preciso ter experiência de vida, bom senso, comprometimento e paixão pelo que se faz. Transformar o cérebro em um disco rígido abarrotado de informações não faz do juiz um bom resolutor de conflitos. Há conhecimento, mas em muitos casos não há preparo. O resultado prático é que alguns juízes, pelo grande conhecimento adquirido, se acham deuses; já alguns desembargadores, têm certeza. Não escutam as partes como deveriam e não perdem a oportunidade de solapar o exercício profissional do advogado. 

E parte dos juízes leigos? Uma catástrofe. Tentam conciliar, instruem processos e julgam (sob o supervisão do juiz togado), como se fossem semi-deuses. Juízes, togados ou não, desembargadores e ministros se tornaram máquinas produtoras de decisões padronizadas e, por vezes, injustas; esqueceram-se de que por trás de cada demanda existem seres humanos, sonhos, erros e acertos, enfim, algo muito maior do que a mera entrega de uma sentença padronizada.
Há poucos dias compareci a uma audiência, defendendo os interesses de determinada empresa/ré. A autora da ação, uma pessoa idosa que teve seus direitos gravemente lesionados, estava transtornada e pediu à juíza leiga a oportunidade de falar. Ditas três ou quatro palavras a autora foi duramente interrompida pela juíza leiga. O advogado da autora havia se atrasado. A juíza leiga sequer repetiu o pregão (três vezes, como determina a lei) para oportunizar a defesa daquela senhora. Prosseguiu-se a audiência sem que a autora estivesse assistida por advogado. Para tentar corrigir um erro incorrigível, a leiga (juíza) fez constar em ata (que a senhora assinou sem saber o que estava assinando) que a autora requeria a diminuição do valor da causa para vinte salários mínimos, para, aos olhos da lei, revestir o ato de legalidade (pois, nos juizados especiais cíveis, a parte não precisa estar assistida por advogado se a causa for de até vinte salários mínimos). A juíza leiga não tem idéia do mal que fez àquela senhora. Calou-lhe a boca, quando tudo que ela precisava era desabafar, por uns dois minutos, diante de uma autoridade (suposta) que estava ali para resolver o seu problema. Diminuiu-lhe o pedido, sem que ela soubesse das conseqüências. A leiga (juíza) ainda fez escárnio do advogado daquela senhora, pois lhe solapou o exercício profissional, condenando-o pelo pequeno atraso (que nunca juiz algum incorreu, não é mesmo?). Digo pequeno atraso porque logo assim que saímos da sala de audiências (que durou no máximo cinco minutos) lá estava o advogado daquela pobre senhora, sem saber o que estava acontecendo. A leiga (que pensa que é juíza) não estava preocupada em resolver o conflito de interesses da melhor forma possível, estava empenhada em gerar números, preparar o processo para mais uma sentença, já que o Tribunal de Justiça, em sua fórmula pífia e capitalista, remunera os juízes leigos de acordo com o número de sentenças que eles proferem no mês. Formalmente saí vitorioso, pois minha cliente-empresa apresentou uma boa defesa técnica, com argumentos relevantes, os quais o colega que defendia a parte contrária sequer teve a oportunidade de rebater. Mas, na realidade, saí daquela audiência enjoado, com a nítida impressão de ter participado de um circo judiciário, visualizando a figura do palhaço (autora), do feroz leão (a leiga) e do contorcionista (advogados).

Ao exemplo acima eu poderia aduzir tantos outros, mas o objetivo não é de relacionar mazelas, o que pretendo é demonstrar que o problema judiciário não é estrutural, é de comprometimento humano. Recentemente a mídia divulgou a catástrofe praticada por um magistrado que utilizou, indevidamente, veículo apreendido de conhecido empresário em ruína financeira. Espero que a mídia, em breve, divulgue uma punição exemplar.
Eu não poderia deixar de exaltar o trabalho de muitos magistrados que conseguem imprimir celeridade e distribuir justiça nos processos que conduzem. Merecem aplausos. São exemplos que devem ser divulgados e seguidos. É lamentável que alguns desses profissionais exemplares sejam alvos de retaliações e armadilhas.
Apesar de tudo, ainda acredito na nobre arte de advogar. Reforço minhas esperanças cada vez que o sucesso da demanda contagia o cliente. Enfrento as mazelas e os maus resultados com a confiança de um eterno aprendiz. Creio no dia em que todos os membros do Poder Judiciário e serventuários perceberão que estender as mãos aos jurisdicionados e seus respectivos advogados é a melhor forma de abandonar o poço de descrédito no qual a Poder Judiciário vem mergulhando.
E quando o cliente insiste em me indagar sobre a demora processual, não tento explicar o inexplicável, apenas convido-o a trilhar o árduo, porém gratificante, caminho que conduz à justiça.

Ilustrações: Les Gens de Justice - By: Daumier

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